As obras literárias, conforme seu conteúdo e estrutura, apresentam predominantemente características de um dos gêneros literários fundamentais: épico, dramático e lírico.
O gênero épico, grosso modo, caracteriza-se pela narrativa (quando uma “estória” é contada) em verso ou prosa. Por exemplo: epopéia, mito, lenda, romance, novela e conto. Expressa o modo temporal ou sucessivo, trata-se de um discurso contínuo. O tempo é o fator estrutural mais importante do gênero épico.
O gênero dramático, grosso modo, caracteriza-se pelos diálogos; é planejado para ser encenado num palco por meio de gestos e discursos dos atores. Por exemplo: tragédia, comédia, farsa e tragicomédia. Embora apresente uma ação metaforicamente colocada no passado, a reproduz no presente pelo desempenho dos atores nos palco.
Quanto ao gênero lírico, trataremos mais detalhadamente depois dessas considerações gerais sobre os gêneros.
A questão dos gêneros literários está em discussão faz séculos. É uma das mais importantes questões em Teoria Literária.
Muitos autores, Aristóteles por exemplo, expuseram regras que definem os gêneros literários. E muitos escritores durante séculos seguiram essas regras de modo que as encontramos exemplificadas em suas obras.
René Wellek e Austin Warren afirmam, em sua obra Teoria da Literatura,que “a espécie literária é uma ‘instituição’ – tal como a Igreja, a Universidade, o Estado, são instituições. Existe, não no sentido em que se diz que existe um animal ou mesmo um edifício, seja capela, biblioteca ou assembléia, mas sim naquele em que uma instituição tem existência. Uma pessoa pode actuar, expressar-se, por meio das instituições que existem, ou criando novas instituições, ou prosseguindo, tanto quanto possível, sem comparticipar na política ou nos rituais; podemos também aderir a instituições e depois dar-lhes nova forma. A teoria dos gêneros é um princípio ordenador: classifica a literatura e a história literária não em função da época ou do lugar (por épocas ou línguas nacionais), mas sim de tipos especificamente literários de organização ou estrutura.”[1]
Isto distingue entre uma modalidade física, individual, de existência, e uma modalidade não–física, ou “institucional”, catalogando os gêneros literários na modalidade institucional.
Mas de onde provêm os gêneros literários? Massaud Moisés diz que “os gêneros literários nascem por uma espécie de imposição natural, qualquer coisa como a adequação do indivíduo ao ritmo cósmico, marcado por uma regularidade inalterável… Por outro lado, a reiteração dum módulo expressivo e, correspondentemente, dum modo de conteúdo (o que significa, de resto, uma específica visão do mundo) obedece a uma tendência inata do homem para a ordem.”[2] Concordemente, Emil Staiger diz que “os conceitos lírico, épico e dramático são têrmos da Ciência da Literatura para as virtualidades fundamentais da existência humana.”[3]
Assim entendemos que os gêneros literários são esquemas de possibilidades de organização literária que existem antes e independentemente das obras literárias. Enquanto possibilidades são esquemas puros. Nas obras encontramos a predominância de um com traços de outros.
Aprofundando um pouco mais sobre a predominância e os traços, Anatol Rosenfeld em sua obra O Teatro Épico, explica que quando nos referimos aos gêneros do ponto de vista ideal, como categorias literárias, associamos o gênero lírico ao substantivo “A Lírica”; o épico, “À Épica”; e o dramático, “À Dramática”. Mas ao analisarmos as obras individuais que a história registra, e que o teórico pode agrupar por suas semelhanças e diferenças, notamos que elas não se encaixam perfeitamente num determinado gênero. Por isso, ainda conforme Rosenfeld, a importância dos significados adjetivos dos gêneros.
Por exemplo: “certas peças de Garcia Lorca, pertencentes, como peças, à Dramática, têm cunho acentuadamente lírico (traço estilístico). Poderíamos falar, no caso, de um drama (substantivo) lírico (adjetivo). Um epigrama, embora pertença à Lírica, raramente é “lírico” (traço estilístico), tendo geralmente certo cunho “dramático” ou “épico” (traço estilístico). Há numerosas narrativas como tais classificadas na Épica, que apresentam forte caráter lírico (particularmente da fase romântica) e outras fases de forte caráter dramático (por exemplo as novelas de Kleist).”[4]
Podemos dizer que os gêneros são as diferenças extremas das possibilidades de estruturação literária que, apesar de suas diferenças, é possível combiná-los formando tecidos mistos. Entretanto, mesmo na mais criativa mistura, as categorias sempre permanecerão como princípios articuladores e elementos mínimos de que se compõe a mistura. Os gêneros literários são realidades arquetípicas que ordenam a multiplicidade dos fatos da história literária.
As Características Fundamentais do Gênero Lírico
O gênero lírico não configura nitidamente personagens, caracteriza-se pela predominância de uma voz central, um “eu” lírico (que não é um “eu” individual) que se funde com o mundo e exprime a plasmação imediata de seus próprios estados de alma, emoções, disposições psíquicas, concepções, reflexões, visões, sentimentos, intensamente vividos e experimentados através de um discurso breve, conciso, denso e extremamente expressivo, construído com ritmo, musicalidade e imagens como o canto, a ode e a elegia.
No que se refere ao tempo o gênero lírico ultrapassa a temporalidade, porque se estrutura segundo a aspiração da eternidade, e seu modo formal é o conceito de “momento”, cujo equivalente espacial é o “ponto”. A lírica destaca um momento do tempo, um ponto do espaço, e os projeta no não–tempo e no não–espaço. Mas para fazê-lo recorre a instrumentos verbais derivados do espaço e do tempo, que marcam os limites do humanamente expressável e a mútua anulação do espaço e do tempo ao cruzar-se no “ponto” ou “momento”. A lírica é a expressão mais pura da relação da dimensão que articula, abrange e contém o espaço e o tempo cristalizando numa obra a experiência universal.
Rosenfeld apresenta a primeira estrofe do soneto número IV dos Quatro Sonetos de Meditação de Vinícius de Morais, por tratar-se de um verso acentuadamente lírico onde encontramos as características fundamentais da Lírica:[5]
Apavorado acordo, em treva. O luar
É como o espectro do meu sonho em mim
E sem destino, e louco, sou o mar
Patético, sonâmbulo e sem fim.
(Vinícius de Morais, Livro de Sonetos)
Aqui vemos o “eu” lírico cantando a experiência angustiante da solidão. A fusão do “eu” com o mundo (sujeito e objeto) é percebida no terceiro verso “(…) sou o mar”. No quarto verso essa característica também é percebida porque as qualidades de um e de outro se misturam: “Patético, sonâmbulo e sem fim”, já não sabemos mais onde acaba o sujeito e começa a paisagem. “O universo se torna expressão de um estado interior”. Perceba o caráter imediato que se manifesta no tempo verbal (presente) que caracteriza um momento eterno que permanece.
Conclusão
Os gêneros literários são, como dissemos, realidades arquetípicas que enquadram e orientam a multiplicidade dos fatos da história literária, sem jamais manifestar-se em toda a sua íntegra pureza — pois a temporalidade imita a perenidade, sem poder identificar-se com ela — e também sem nunca desaparecer totalmente de cena, por mais irreconhecíveis que os torne a multidão dos fatos e variações particulares. A dificuldade que o homem moderno contemporâneo sente em compreender os gêneros e reconhecê-los no meio dos dados empíricos é a mesma que ele encontra para reconhecer qualquer sentido arquetípico nos fatos de uma vida cotidiana totalmente banalizada e coisificada. A dificuldade de ver está no sujeito não no objeto.
Os gêneros literários deitam suas raízes no absoluto, no infinito, no ritmo cósmico de que falou Massaud Moisés.
Notas
[1] Wellek, René e Warren, Austin, Teoria da Literatura, 2ª ed. Lisboa, Publicações Europa–América, 1971, p. 286.
[2] Moisés, Massaud, A Criação Literária, 5ª ed. São Paulo, Melhoramentos, 1973, p. 37.
[3] Staiger, Emil, Conceitos Fundamentais da Poética, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975, p. 165.
[4] Rosenfeld, Anatol, O Teatro Épico, São Paulo, Perspectiva, 1985, p. 18.
[5] Rosenfeld, op. cit., p. 23.
Bibliografia
Carvalho, Olavo de. Os Gêneros Literários: Seus Fundamentos Metafísicos.Rio de Janeiro: Instituto de Artes Liberais & Stella Caymmi, 1993.
Frye, Northrop. Anatomia da Crítica. Trad. P. E. da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1973.
Kayser, Wolfgang. Análise e Interpretação da Obra Literária. Coimbra: Arménio Amado, 1970.
Moisés, Massaud. A Criação Literária. São Paulo: Melhoramentos, 1973.
Rosenfeld, Anatol. O Teatro Épico. São Paulo: Perspectiva, 1965.
Staiger, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969.
Wellek, René, e Warren, Austin. Teoria da Literatura. Lisboa: Publicações Europa–América, 1972.